segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A poça d`água - Crônica

Ninguém dá importância a uma poça d´água. Só se presta atenção a ela, para evitar molhar os pés, ou sujar os sapatos.

As crianças bem pequenas, sim, lhes dão importância, -- são fascinadas por elas -- e, embora as mães as previnam de não pisarem nelas, elas não as ouvem, e fazem questão de meterem o pezinho exatamente dentro da poça.

Plaft !!!

Com força. Espirrando água suja por todos os lados. De propósito. Por isso levando uma reprimenda, e até, por vezes, um puxão de orelhas. Do qual se esquecem, logo na próxima poça.

Plaft!!!.

De novo.

Ninguém gosta de poças d´água depois das chuvas.

A não ser as crianças...

Crianças ainda tropeçantes, de meia molhada, de sapatinho barrento, e de orelhinha vermelha...

Até a próxima poça.

Plaft!!!

Mais uma vez.

...................................Plaft!!!...................................Plaft!!!...............................................

Quando não há mais plafts propositais, já não se é mais criança. Ficou-se eleitor.

Que desgraça! Que tristeza!

Então, já não há mais plafts propositais.

Só por acidente.

Com raiva do prefeito que não tapa os buracos nas ruas e nas calçadas.

............................................................................

Mas, se crianças votassem, ganhariam os plafts!

Nunca os prefeitos

...................................Plaft!!!...................................

Foi uma distração. Instalou-se um novo Prefeito. Que prometeu combater as poças. Que tristeza! Que desgraça!


Quando era pequeno, encantava-me ver a água correr célere, depois de uma chuvarada, por uma ladeira de pedras e lama, num sítio de um tio.

Ela deixava poças, onde o céu azul se refletia, nas tardes quentes, depois do temporal, as nuvens passeando rápidas pelo espelho da poça. Pelo espelho encantado da poça d´água.
Havia poças lamacentas, e outras até limpas. Pelo menos, me pareciam limpas.

Divertia-me represar a água da enxurrada, fazendo diques de barro, lutando contra a corredeira, para detê-la por curto tempo. Brincando de por limites às águas. Encantado de controlar impulsos desordenados, opondo-lhes lei e regra.

Toda criança quer por limites às águas que correm pelas ladeiras depois das chuvas. As mães cuidadosas fazem o mesmo ao advertir os filhinhos a não pisarem nas poças. Põem limites.

Há séculos os homens fazem o mesmo – de modo mais sério — criando represas e açudes. Brincadeira séria de adultos, visando a produção agrícola. O que os impede de saber brincar de fazer poças d´água. Desinteressadamente. Por amor da água empoçada espelhando o céu.
Havia também uma fonte, no sitio de meu tio. Mas nela não se podia brincar. Era proibido. Para não sujar a água. Nela, a água escorria alimentada por um olho d´água, chorando constantemente...
A fonte era limpa e tinha uma nobreza que a poça d´água — muito reles, muito vulgar – nem sonhava ter. Mas toda fonte gera uma poça d´água.

E havia uma represa, lá perto. Uma beleza! A água arrepiada de emoção pela brisa da tarde que passava, e que a fazia chegar em ondazinhas curtas junto aos barrancos abruptos dos outeiros, entrando pelos vales, num azul imenso espelhando o céu, o arvoredo nas colinas, floresta verde, cujos pés a água azul vinha beijar reverente e calma. E nos dias chuvosos ou de inverno, as nuvens e a neblina vinham esparzir seu véu cinzento de mistério entre as árvores e rente às águas.

E havia o vento...

O vento que cantava no arvoredo...

O vento que acariciava docemente as águas...

O vento que, soprando, arrepiava num frêmito amoroso, as águas beijadas da represa, formando ondas pequenas e ligeiras, rebrilhantes à luz do por de sol na calma das tardes.

O céu azul, a terra e a água.

A luz do sol e o vento.

E contemplando aquelas águas calmas e azuis, o espírito repousava naquele suave e rebrilhante estremecer das águas.

Toda aquela beleza e poesia não tinham comparação com a vulgaridade e a miséria da poça d´água.

Mas...

E o mar?

O mar... Grandeza incomparável que os rios buscam como seu primeiro e único amor, desde que escorrem puros de sua fonte primeira. Mar, que as enxurradas procuram solertes, brincando apressadas nas pedras, borbulhando, resmungando, por que as pedras as detém em sua corrida afobada, e as impedem de alcançar logo o mar e a sua grandeza.

O mar não tem nada que se lhe compare.

E a poça d´água dele se sente exilada para sempre. Sua única esperança é a luz misericordiosa do sol que a faz ir para o céu, evaporada, para cair, depois, -- graças a Deus, que ama os humildes -- como chuva, diretamente sobre a grandeza infinita do mar.

O mar... Ao qual Deus colocou os limites no início dos tempos, quando Ele brincava com os pólos da Terra. Porque fora do Infinito divino, tudo tem que ter limites.

São então poucos os que olham para a poça d´água: as crianças teimosas e brincalhonas, atraídas por sua pequenez; as mães cuidadosas preocupadas com resfriados; os meninos inocentes que vêem o céu espelhado nela.

O céu...

Até numa poça d´água.

Porque o céu se espelha na poça d´água!

E por que o céu se espelha numa poça d´água?

Por que será que Deus fez a poça d´água?

Porque a misericórdia de Deus é infinita.

Porque foi a Sabedoria de Deus que – imitando os meninos inocentes – fez a pequena poça d´água. Para as criancinhas brincarem. Para os adultos pensarem. Para converter os pecadores.

Porque a Sabedoria, sabendo que haveria homens tão maus que só se interessam pela lama, homens tão impuros e grosseiros, que só olham para a terra e para o lodo, e jamais para o céu, a Sabedoria de Deus que, no Princípio, brincava com o globo do mundo, foi ela que, por misericórdia, fez o céu se espelhar numa simples poça d´água, a fim de colocar o céu em meio à lama e à sujeira barrenta, para que pelo menos então, as almas torpes vissem o céu refletido numa reles e miserável poça d´água.

Pois foi a Sabedoria de Deus que cantou a Si mesma, dizendo na Sagrada Escritura:
“Ainda não havia os abismos, e Eu já estava concebida; ainda as fontes das águas não haviam brotado; ainda não se tinham assentado os montes sobre a sua pesada massa; antes de haver outeiros, Eu tinha já nascido.
Ainda Ele não tinha criado a terra nem os rios, nem os eixos do mundo.
Quando Ele preparava os céus, Eu estava presente; quando por uma lei inviolável, encerrava os abismos dentro de seus limites; quando firmava lá no alto a região etérea, e quando equilibrava as fontes das águas; quando circunscrevia ao mar o seu termo, e punha lei às águas, para que não passassem os seus limites; quando assentava os fundamentos da terra, Eu estava com Ele regulando todas as coisas; e cada dia me deleitava, brincando continuamente diante dEle, brincando sobre o globo da terra, e achando minhas delícias em estar com os filhos dos homens” (Eclesiastes, VIII, 24-32)
Foi a Sabedoria de Deus que fez o mar, a fonte e a poça d´água, quando brincava com o globo da terra. Foi a sabedoria de Deus que pos limites ao mar, ao homem, e à poça d´água.

“Disse também Deus: As águas que estão debaixo do céu, ajuntem-se num só lugar,e apareça o árido. E assim se fez” (Gen I,9).

Deus represou o mar e a poça d´água. Colocou limites ao grande e ao pequeno. E em ambos refletiu o infinito.

Foi a Misericórdia de Deus que fez o céu se espelhar nas poças d´água. Para as crianças teimosas e curiosas. Para os meninos inocentes.

Para os pecadores verem um momento o céu. Mesmo em meio da lama de suas vidas.

Bendito seja Deus de tanta misericórdia que nos procura até na lama, e nos faz lembrar do céu, ainda que estejamos no meio do lodo.

Bendito Aquele que colocou limites em todas as coisas, e que permitiu que o finito refletisse o Infinito.

Pois no Princípio, no Verbo, na Sabedoria “No princípio criou Deus os céus e a terra...
“E a terra estava informe e vazia...
“E o Espírito de Deus pairava sobre as águas...(Gen, I).


O mundo pagão criou o mito de Narciso, espelhando-se na fonte. E tão encantado teria ficado o tolo do Narciso com a sua “linda” figura, que se lançou à água, e na fonte se afogou. É o que diz o mito pagão e mentiroso.

Foi o castigo da vaidade, explicam os professores superficiais e rasos como poças d´água, o que ensina o mito de Narciso. Daí o “narcisismo” como designativo de uma auto-contemplação vaidosa e orgulhosa.

Não. Narciso não se apaixonou por sua própria figura, mas por sua imagem. O mito de Narciso é explicado mais profundamente pela Gnose antiga. Mais profundamente e mais falsamente também.

Para a Gnose, o mito de Narciso ensina que o homem queria buscar a divindade, que existiria nele como uma semente divina posta no homem. Como o disse também o Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, n0 3. Para a Gnose, Narciso, -- o homem -- então, deveria matar-se, para fugir deste mundo material, mergulhar em si mesmo, em busca do seu verdadeiro eu interior, que seria divino.

A fuga do mundo material era simbolizada pelo mergulho de Narciso na fonte, em uma busca de sua imagem, invertida pelo espelho das águas. Seria preciso fugir da vida, fugir deste mundo material e buscar outro mundo inverso deste mundo em que Deus nos colocou.

Auto-contemplação vaidosa na superfície, auto adoração gnóstica no profundo das águas da fonte, de ambos os modos o narcisismo é bem condenável, em qualquer de suas explicações pagãs feitas “al tempo delli dei falsi e bugiardi” (Dante, Divina Commedia, Inferno I, 72).

O que me levou a pensar tudo isto foi a ofensa que uma pobre mocinha, ouvinte acidental, me lançou, ofensa meio resmungada entre dentes rangentes, num domingo, acusando-me de narcisismo.

A ofensa e o desprezo à poça d´água, por suas margens lodosas é coisa justa. Mas o elogio jamais é à poça d´água, e sim à imagem do céu que há nela. Bem tola seria a poça d´água se acreditasse que os elogios são para ela, e não por causa da imagem do céu nela!

Por isso, a ofensa que recebi da pobre moça me deu uma grande alegria. O ultraje me fez compreender no que nunca havia pensado; no que era realmente o narcisismo, e a compreender mais profundamente a maravilha que há numa poça d´água. A maravilha do Infinito no finito. E compreender a bondade dos limites.

Pois que, já no Princípio, no mistério do Bereshit,-- está escrito--, o Espírito de Deus pairava sobre as águas...
No Princípio!...

No Princípio, criou Deus todas as coisas.

No Princípio, que é o Verbo, foram feitas todas as coisas. Foi no Verbo, na Sabedoria que Deus fez a poça d´água, quando Deus pôs limites às águas.

Também o homem foi feito no Princípio.
E Deus disse:

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança e presida ele aos peixes do mar, e às aves do céu e aos animais selváticos e a toda a terra” (Gen. I, 26).
“E o Senhor Deus formou, pois o homem o homem do barro da terra, e inspirou no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma vivente” (Gen. II, 7).

Assim Deus fez o homem de barro. Com terra e água. E o fez à sua imagem.
O homem espelha a Deus em sua alma. Tal como a poça d´água espelha o céu, a alma humana espelha a Deus. Ao olhar uma poça d´água, vemos o céu nela refletido. Ao contemplarmos o rosto do homem, rosto em que Deus soprou, pode-se ver transparecer nele a imagem de Deus.

Deus ama a alma humana e se espelha nela, e se ama a Si mesmo, vendo-Se na poça d´água miserável de nossas almas manchadas pelo lodo, por nossos limites de barro.

E as pobres poças d´água que somos, também nós, nós também vemos constantemente o Céu, quando em meio ao nosso lodo, olhamos para o alto.

Porque Deus fez as poças d´água olhando naturalmente para o céu. Voltadas para o Alto. Somos de lodo em nossos limites, mas voltados sempre para o céu, espelhamos a Deus.

Todo homem é como a poça d´água: um limite barrento, um limite miserável de lodo, cercando uma belíssima imagem de Deus.

Pois Deus pôs limites às águas. Desde o Princípio. Em sua sabedoria.

Adão foi o primeiro que quis recusar os limites. Quis ser Deus e rompeu os limites de sua poça. Daí Cristo ter vindo para restaurar os limites de barro do homem com o barro de sua natureza humana e com os méritos infinitos de sua natureza divina. Ele nos concedeu a possibilidade de nos tornarmo-nos filhos adotivos de Deus, restaurando a nossa poça, e pela recepção da água do Batismo. De novo, nos fez com barro e água.
Essa é a nossa nobreza, purificada e reelevada à dignidade de filhos adotivos de Deus pela água do Batismo.

E há que contemplar no ser humano, não particularmente as margens lodosas miseráveis, mas sim a imagem do céu espelhada na alma, na superfície espiritual, que o sopro de Deus fez estremecer de júbilo, num êxtase, já quando Deus falava a Adão na brisa da tarde. Nisso está o segredo do amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos. Deus falando na brisa que faz estremecer, num marulho suave, a superfície das águas

Amar...

Que palavra tão prostituída hoje!

Conta-se que o mais difícil de traduzir, na encíclica primeira do Papa Bento XVI, que está para ser publicada, foram as palavras iniciais que intitulam o novo documento pontifício: “Deus Charitas est”.

Como traduzir Charitas? Amor?

Mas por amor o que se entende hoje?

Encher estômagos...

Alimentar a animalidade, satisfazer necessidades físicas, quando nem só de pão vive o homem.

Amar, hoje, é considerar o homem apenas em si mesmo, em sua animalidade apenas. Apenas como um tubo digestivo que é preciso preencher, e não como imagem de Deus que é preciso elevar, dignificar, saciando-a com a verdade, fazendo-a amar a virtude.

Não que não se deva ajudar o barro da poça d´água, sem o qual ela nem pode existir. Mas o barro existe para permitir a esse pequeno lago azul, espelhar a Deus.

Quem ama neste mundo de ódio, neste século da mentira que tudo prostituiu?

Neste mundo impuro que prostituiu o mar e o amar?

Amar, hoje, é reduzida à filantropia que só contempla, com ufania de néscio e com orgulho estúpido, a lama de que somos feitos, e jamais a imagem de Deus na poça d´água de nossas almas. Amar, hoje, no máximo, é sustentar a lama em seu lodaçal, sem nenhuma preocupação com a imagem que se reflete na poça d´água da alma.
E se julga que amar é retirar todos os limites das águas, deixar as águas correrem para o abismo, sem refletir mais nada, em nome de outra palavra prostituída: liberdade.
Só ama de verdade as almas, quem lhes põe limites, quem põe limites às poças d´água, permitindo-lhes que reflitam o céu.

E como eram belas as poças d´água que encontrei em minha vida, nas salas de aula dos colégios de minha juventude!

Não. Não pisei nelas, esborrifando a imagem divina nelas refletida.

Não. Jamais.

Mas amei a imagem infinita que perpassava por elas.

Como o menino que fui se encantava com o céu azul e as nuvens perpassando pelas poças d´água, quando professor as contemplei sempre do mesmo modo, vendo nas almas dos alunos, em seus rostos, refletidos na poça d´água de minha alma, vendo a imagem de Deus nelas. Vendo-as tendo por fundo o céu azul. Vendo nelas o céu. Vendo-as no céu. Vendo, refletidas nelas, a face de Deus.
E feliz, eu também, porque, ao olharem a poça d´água de minha alma, elas – sem o saber -- também colocavam suas imagens em minha alma. Porque espelhavam, em minha alma, a imagem de Deus que havia nelas.
Havia assim uma reflexão dupla: a imagem delas em minha alma, enquanto elas também me viam no céu espelhado na poça d´água que o professor era para elas. Elas também viam o céu em mim, enquanto eu, de minha parte, as via no profundo céu azul.
“Ah laisez moi vous regarder encor...
« Laissez moi que je reconnaîsse ces traces de Dieu dans vos âmes, et sa beauté encor.
« Laissez moi que je te regarde ma vaillante et toujours jeune Montfort ».
Deixai que eu vos olhe ainda um pouco, como quando os olhei, um dia, em minha juventude, na vossa juventude, meus alunos, as almas em que Deus se espelhava -- em imagem belíssima -- na poça d´água de vossas almas. E vos vejo ainda agora como os vi -- meninos e meninas -- de rostos alegres refletidos na poça d´água de minha alma.

Sim, impressos no fundo de minha alma. Porque é bom ser como a poça d´água.

Vejo ainda vossas almas, então, há tantos anos, me olharem surpresas. Surpresas sim, com olhar surpreso, porque, apesar de minhas margens lodosas, vós também víeis o céu perpassando no fundo azul da poça d´água barrenta e miserável de minha alma.

...Surpresas.... Surpresas e encantadas.

E enquanto olháveis o céu na poça d´água do professor, ele também vos via no céu, contra o azul do céu, que lhes servia de fundo, espelhando-se nele.

E eram tão belas as almas que eu via no fundo azul do céu, sempre que vos olhava, olhando o céu em vós, que miráveis o céu azul, em mim.

Como são belas as almas quando, como crianças, olham o céu numa pobre poça d´água de um velho professor!

E a surpresa em vosso olhar exclamava então exultante:

“Mas o céu então existe! Existe uma imagem de Deus refletida em nossas almas! Então a maravilha do existir tem uma explicação! Na há só miséria em mim”!

E também o professor se comovia vendo o céu em vossas almas juvenis, tão belas, ao se refletirem em mim junto com a imagem do céu azul enfeitado com nuvens brancas.

E a brisa do céu é como o sopro de Deus que faz estremecer de alegria a superfície de minha poça d´água, comovendo-me até o fundo de meu abismo de lodo!

E quando o professor encontrava uma poça d´água que sem limites escorria louca pelas ladeiras aos abismos da perdição, sem mais ter o poder de refletir o céu azul, apressava-se, como quando era menino, a por limites na enxurrada louca, para empoçar as águas e formar nelas um espelho do céu. Desde pequeno divertia-me pondo limites às águas loucas, brincando sobre a face da terra. Sempre acreditei possível por limites em certas almas escolhidas embora tresmalhadas.

Quantas poças d água fiz!
Quantas poças d´água Deus fez comigo, pondo-lhes os limites da lei.

E que crime cometem aqueles que se recusam a deter as águas em nome da independência e da liberdade, que se recusam colocar limites às águas da alma humana, não permitindo que Deus se espelhe nelas!

Que crime comete aquele que diz para um moço: você está aí, parado que nem uma poça d´água, perdendo sua vida nesse grupo, perdendo o seu tempo.

Como se espelhar o céu fosse uma perda de tempo. Nascemos apenas para espelhar o céu para que os outros vejam em nós a imagem do Altíssimo, que sabiamente permitiu ao finito refletir o Infinito.
A poça d´água em que se espelha o céu, repito, foi feita pela Sabedoria e pela misericórdia de Deus que coloca limites ao nosso lodo, a fim de podermos espelhar, um momento que seja, o céu, a imagem de Deus em nós.
E haveria que falar ainda da redução do amante ao amado, assim como do amado ao amante. Porque ao contemplarmos a poça d´água vemos o céu maravilhoso espelhado nela, ainda que cercado por miseráveis limites de lodo. Deus se espelha em nossas almas, e Ele nos ama por sua imagem espelhada em nós. E nós O amamos por ver o Infinito imageado no finito de nossa pobre alma cercada pelos limites miseráveis de nosso corpo lodoso.
Um no outro. E nisto está a essência do verdadeiro amor que é unificante por participação. Amar ao próximo por amor de Deus unifica os homens, unido-os a Deus.

Amar o próximo – e quem é mais próximo do Professor do que o aluno?-- por causa do Infinito refletido na poça d´água finita do coração humano, por ver nela o céu, por saber ver nela a imagem de Deus, essa é a razão de vida do Professor.

Ah! a graça de amar os outros por Deus!

Ah a doçura infinita de saber ver Deus na face dos alunos.

Ah o encantamento de contemplar Deus nos olhares brilhantes olhando extasiados o professor — pobre poça que fala — que fala através da imagem do céu que ele contém, sem o saber, em sua alma-poça d´água, também.

O professor só vê nele mesmo os limites lodosos, e estremecendo de temor se pergunta:

“Turvei eu a imagem do céu em mim?”.

“Verão ainda os olhares das almas jovens o céu em minha alma?"

"Ouvirão ainda a canção que fala do céu, que vejo e que canto, como pano de fundo de suas almas, quando me olham atentamente nas aulas, como as crianças olhando extasiadas o céu nas poças d´água, e quando eu mesmo olho para o céu?”

E se, por acaso alguém me apostrofa acusando que minhas margens são de lodo, como não chorar diante dessa verdade irrefutável?

Sim. Minhas margens são de lodo...
Tende pena de minhas margens e lembrai-vos que também em minha superfície Deus espelhou o céu.

Olha para o céu!

Mesmo em mim. Apesar de meu lodo

Olha! Volta a olhar o céu na poça d´água de minha alma.

Que tenho sede de tua alma, porque vejo o céu atrás de tua imagem em mim

Que as lágrimas de dor contribuem para tornar a poça mais límpida.

Só para ver o céu. Para ver o céu. Convosco.

Em vós. E se uma alma me diz, entre lágrimas, em telefonema doloroso: “Jamais vou conseguir espelhar a Deus me mim”, que dizer a essa pobre alma, senão que deixe de contemplar suas margens de lodo e que olhe para o alto, pois que toda poça d´água, ainda que barrenta, espelha o céu. Olha pois para o céu, o minha alma.

E se procuro um rosto entre vós um rosto que comigo esteve, e já não o vejo... Se vejo um pobre dique arrombado pela ilusão de ganhar ou de gozar a vida, a água escorrida.... A imagem desaparecida... A dor é grande...

Onde está aquela poça d´água em que o céu se refletia lindíssima? E tenho saudades de uma poça d´água. E tenho saudades de uma imagem. E desejo poças d´água.
E enquanto não retornar a ver contra o céu azul o rosto delas, minha alma anseia por suas almas, aluno que se afastou, aluna que se aproxima. Ansiando pela imagem de Deus em vós, como a praia anseia a onda que retorna como carícia sobre praia ressequida.
Pois tenho sede de suas almas.

Das quais tenho sede.

Oh! a sede de almas!

Como ela faz viver


Hoje vemos aqui a Montfort festivamente reunida.
Que bela poça d´água ela é, na qual se pode ver também, apesar de tudo, o céu azul espelhado, onde se pode ver, -- se se tem olhos para ver --a imagem de Deus nas almas dessas moças e desses moços que Deus colocou em meu caminho. Nessas vozes e nessas canções, cantando a “Vecchia canzone” – a velha canção que sempre cantei – cantando o fogo que flameja.
Quando ouço a Montfort cantar o fogo que queima, queima, queima ardentemente.

Quando vejo o fogo de amor pela imagem de Deus espelhada em toda a parte, em todas as almas e em todas as coisas, e mesmo na chama pura do fogo.
Quando se vê Deus refletido em tudo, quando se tem olhos para ver bem até uma poça d´água...

Então... Então...
Se tem a felicidade já na terra, pouco importando os ódios e as incompreensões.

Para ver Deus em tudo...

Então deixai-me olhar a Montfort encor...

Laissez moi vous regarder un peu encor, nesta noite de festa e de felicidade.

Deixai-me ver – um pouco ainda. De novo! -- o céu na poça d´água de vossas almas

Deixai-me ver ainda, durante um pouco de tempo, como um menino olha o céu azul em vossos rostos, espelhados no mais fundo de minha alma. Sim, porque vossos rostos, vossas almas estão todos bem gravados no fundo de minha alma.

“E como me esquecerei de ti?”
“Eu sou o teu professor que te tomei pela mão, um dia, quando viste o céu na poça d´água de minha pobre alma”.

E vendo tantos jovens e tantas almas sedentas de verdade e de justiça, aqui na Montfort, -- só posso olhá-los como o professor que Deus ajudou a deter a enxurrada que escorria louca para os abismos nos colégios pelos quais passei e que agradece a Deus o tê-los convertido.
Adeus rock. Adeus prazer. Adeus sonhos.

Mas Deus. Cristo Maria Santíssima. A Santa Igreja. A cruz. A luta. O argumento. A Verdade. A virtude. A Beleza.

E como é belo o céu azul espelhado nessa pequena poça d´água que é a pequena e valente Montfort!


E não haveria uma poça sem lodo?

Só porque todo ser humano é finito, toda poça d´água tem que ter margens.

Mas toda poça tem que ter lodo em suas margens?

Não seria possível haver uma poça d´água, com margens de barro, sim, mas sem lodo e sem mancha?

Não deveria haver um ser humano sem lodo em suas margens, uma alma que espelhasse imaculadamente o céu azul, Deus refletido perfeitissimamente em sua alma?

Deus fez uma nova Eva, com margens sim, por ser finita, mas sem o lodo do pecado original, para que nela pudessem os homens ver plenamente e purissimamente a imagem de Deus refletida perfeitissimamente num ser puramente humano.

Pois que Deus reuniu todas as águas num só lugar e as chamou de “mária”, e reuniu todas graças numa só pessoa e a chamou de Maria.

O speculum Dei sine labe originale concepta.

A perfeita imagem de Deus: Maria Santíssima.

Ela, a única poça d´água com limites, mas absolutamente sem lodo. Ela, a fonte perfeita, na qual se espelha Deus de modo pleno. Ela, Maria, em quem devemos contemplar o céu sem receio. Ela, tão perfeito espelho de Deus que em seu seio virginal gerou o Verbo feito carne.

Nela, sacrário do Altíssimo, encontramos a Verdade encarnada, Jesus, a Verdade no seio da virgindade.

O fons Veritatis! O fons castitatis

O fons Dei! O fons Spei!

O fons Splendoris! O fons Amoris!


Mas Nossa Senhora, Ela também pertence à Igreja. É sua Mãe e sua Rainha. E sendo sua Mãe e sua Rainha, Ela é também parte da Igreja. E como a parte é menos que o todo, Maria, que beira o infinito, é menos que a Igreja, Corpo Místico de Cristo.
Na Igreja não temos apenas uma imagem de Cristo, mas temos o seu Corpo Místico.

A Igreja Católica é a única esposa de Cristo. Contra os erros do ecumenismo.

A Igreja é sociedade divina e humana.

É divina, pois que sua cabeça é o próprio Cristo Deus. É humana em seus membros. E por ser humana, também as margens da Igreja são feitas de terra. E nas margens da Igreja também pode haver lodo.
Mas, na Igreja enquanto tal, está o Espírito Santo, Alma Divina da Santa Igreja.

O Espírito de Deus que pairava sobre as águas, desde o Princípio, Ele continua visível na Igreja para quem tem olhos para ver o céu na poça d´água.

Então, de tudo isso se compreende porque Deus, por misericórdia e Sabedoria, fez a poça d´água, a fim de que os pecadores que só olham para a lama, pudessem em meio à podridão da terra, ver o céu refletido na lâmina das águas, E assim também Deus fez a Igreja como poça d´água perfeita.

E se permitiu Deus que as margens da Igreja, por sua parte humana, sejam lodosas, foi para selecionar os que, como Deus, tem olhos de misericórdia e de sabedoria para ver Deus espelhado na Igreja, sem se perturbar pelo lodo de suas margens. Pois a sabedoria está nisto: sabendo que Deus se encarnou, ver Deus na humilhação da natureza humana. Cristo, Deus infinito, não desdenhou ser contido numa natureza finita, e ter até margens feitas de barro, sem a mancha do lodo.

Saibamos contemplar então na poça d´água perfeita que é a Santa Igreja Católica: Velatum sub carne Deum infantem, pannis involutum.

Saibamos ver na Igreja, a face de Deus velada em margens humanas e de barro.
Hoje, na Santa Igreja Católica Apostólica Romana única Igreja fora da qual não há salvação, a face de Deus está bem desfigurada pelos pecados dos homens.
Apesar do lodo das margens, saibamos olhar para face de Deus humilhada, mas sempre Santa na Igreja Santa.

Como é bela a poça d´água. Ela espelha o céu.

Olha para o céu, pelo menos através da humildade da poça d´água.

Olha para o céu, pelo menos através da velha e rouca voz de um professor que, por meio de pobres palavras conclama, a você, aluno que me telefonou, dizendo-me hoje: “Não quero mais ficar parado, perdendo minha vida. Quero salvar minha vida”, olha para o céu refletido na poça d´água de sua alma. Lembra-te de que “quem salvar sua vida, perdê-la-á”.

Olha para o céu, contemplando a fonte puríssima do Verbo: Maria sempre Virgem.
Olha para o céu através da Igreja, que reflete a Deus perfeitissimamente, mesmo que suas margens estejam lodosas.

Olha também a Montfort, que, apesar de suas misérias em suas margens de lodo, também ela, humildemente, reflete o céu.

Olha, com olhar de menino, a poça d´água que Deus colocou em seu caminho: a Montfort.

Como é bela a poça d´água espelhando o céu.

Como é belo o céu na poça d´água de tua alma!

Como é bela a Imagem de Deus infinito nessa poça d´água pequena e jovem, valente e pura, ardente e ousada dos jovens da Montfort

E tenho sede!

Tenho sede de tua alma.

Faz-me ver o céu. Em tua alma.

São Paulo, 30 de Dezembro de 2005, na festa da Montfort.
Orlando Fedeli

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