sábado, 29 de agosto de 2009

Tangíveis e intangíveis: para Fernando Muniz, ‘não há como determinar a superioridade de um sobre o outro’

Ao investigar os valores intangíveis nas organizações, a revista Comunicação 360°, que dedica a próxima edição a esses ativos – que vão muito além do patrimônio e dos resultados contábeis das empresas –, conversou com profissionais de várias áreas. A fim de construir uma reflexão diversificada sobre o assunto, consultou Fernando Muniz, doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
De malas prontas para uma temporada como professor visitante na prestigiosa instituição americana Brown University, Muniz, que é especializado em filosofia grega, contribuiu com uma análise crítica do tema e discorreu sobre a busca de novos critérios de avaliação. “Essa tendência não é sintoma apenas de avanço da humanidade na compreensão de si mesma, mas sim – o que parece bem mais plausível – da tomada de consciência de algumas entidades financeiras do papel que os valores éticos desempenham na atividade econômica mundial”, aponta.
A entrevista a seguir compõe a reportagem de abertura da publicação.
Nós da Comunicação – Do ponto de vista filosófico, como definiria os valores intangíveis?
Fernando Muniz – Para melhor entendermos a ideia de valor intangível, precisamos observar sua face positiva: o valor tangível. Em primeiro lugar, seria interessante retomar o sentido etimológico do termo. “Tangível” deriva do verbo latino tangere, “tocar”. Um célebre exemplo do emprego desse verbo pode nos fornecer um caminho interessante para a compreensão da noção de tangibilidade: segundo o Evangelho de São João, quando Maria Madalena tenta se aproximar de Jesus ressuscitado, Jesus impede a aproximação dela com a expressão, Noli me tangere, ou seja, “Não me toque”. Na versão original grega, o verbo é hapto e tem um sentido mais amplo: “manter contato”, “segurar”, por extensão, “prender”, “agarrar”. Temos, então, duas possibilidades de interpretar a frase. Podemos entender que Cristo diz a Madalena que (1) não pode mais ser tocado ou que (2) não quer ser segurado e impedido de seguir para o Céu.
Se seguirmos essas indicações, podemos conceber as coisas tangíveis como sendo coisas dotadas da consistência necessária para que sejam agarradas, fixadas, conhecidas em suas dimensões e características físicas. Coisas tangíveis, portanto, são todas as coisas que estão a nossa volta: maçãs, pedras, nuvens, calor. Alguém poderia reclamar que nuvens e calor não são palpáveis, que a nuvem poderia nos dizer também: Noli me tangere. Mas, na verdade, nuvens e calor, como maçãs e pedras, também são apreendidos por instrumentos técnicos – balanças, termômetros, réguas – que fornecem um conhecimento bem mais rigoroso, no sentido matemático, do que nossa avaliação manual. Coisas tangíveis são, portanto, coisas que podem ser medidas, pesadas, somadas. São tangíveis exatamente por serem quantificáveis, ou seja, redutíveis a quantidades.
Nesse sentido, se Cristo pediu para não ser retido ali, Ele era, naquele momento, um ser tangível, dotado de matéria quantificada, com certa altura, certo peso, dotado de um corpo a ser segurado. Mas, se Cristo disse a Madalena que não podia ser tocado, estava dizendo uma coisa bem diferente, que não podia mais ser apreendido, agarrado como uma coisa qualquer deste mundo: Ele havia se tornado intangível, um ser distinto das coisas que podem ser medidas e apreendidas por metros.
Dito, portanto, de um modo simples, valores tangíveis são comensuráveis, como qualquer bem material: carro, casa, terreno. Valores intangíveis são incomensuráveis, como a beleza, o bem, a amizade. Sabemos que, em um concurso de beleza, uma miss do passado perdeu o trono por ter uma polegada a mais nos quadris. O ridículo dessa situação está justamente na vã pretensão de transformar o valor incomensurável da beleza em extensões a serem medidas. Mas, se as coisas são mesmo assim, como podemos comparar coisas incomensuráveis? Não há uma forma inquestionável de determinar a superioridade de um sobre o outro. Não podemos estabelecer, por exemplo, uma régua que possa medir e comparar a intensidade do afeto que sentimos por nossos filhos ou por nossos amigos. As escolhas serão sempre determinadas por critérios, mas critérios sempre discutíveis.
Por essa razão, reconhecer a especialidade incomparável de alguém por quem sentimos amor ou amizade é reconhecer nela ou nele a manifestação de um valor incomensurável. Quando dizemos que amizade não tem preço, não estamos querendo dizer que não tem valor, pelo contrário, estamos afirmando seu valor intrínseco. Tudo o que tem preço obedece a padrões de medida. Os valores éticos, no entanto, não têm preço. Amizade, justiça e solidariedade não se compram; ainda que saibamos que as pessoas continuam fazendo isso com obstinada constância.

Sustentabilidade
Nós da Comunicação – O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] abriu uma linha de financiamento que confere, em sua avaliação de risco, igual peso aos ativos tangíveis e intangíveis das empresas. Depois de darmos um primeiro passo, reconhecendo a importância da sustentabilidade financeira e socioambiental, esse reconhecimento dos ativos intangíveis representaria a recuperação dos valores humanistas nas empresas e relações de negócio?
F. M. – Digamos que a busca de novos critérios de avaliação seja mesmo uma tendência mundial. Essa tendência, no entanto, não é sintoma apenas de avanço da humanidade na compreensão de si mesma, mas sim – o que parece bem mais plausível – da tomada de consciência de algumas entidades financeiras do papel que os valores éticos desempenham na atividade econômica mundial. Esse papel é tão mais pertinente quando se trata, por exemplo, da garantia nos empréstimos e financiamentos. Sabe-se, há muito, que não há relação necessária entre honestidade e posse de ativos comensuráveis. Ao contrário, pesquisas têm mostrado que pessoas com baixo poder aquisitivo e parcos recursos materiais costumam, com mais frequência que as de maior poder aquisitivo, cumprir com regularidade suas obrigações financeiras. O reconhecimento da influência do comportamento ético na atividade econômica faz parte de uma política de segurança das instituições e tem, como consequência, a valorização de condutas e aquisições pessoais desconsideradas até então por análises meramente quantitativas.

Ética e reputação
Nós da Comunicação – Podemos atribuir a raiz dessa discussão a alguma corrente filosófica relacionada ao pensamento humanista?
F. M. – A filosofia, desde suas origens gregas, preocupou-se com a questão dos valores éticos. Tal preocupação diz respeito a uma questão elementar: como a vida deve ser vivida? Essa questão, por sua vez, coloca em cena valores de vários tipos, bens de várias naturezas. Muitas respostas podem ser dadas a essa questão. Algumas são evidentemente não-éticas e insuficientes. Por exemplo, se respondo que viver bem é fazer o que quero, satisfazer meus desejos, ter prazer a qualquer preço, devo admitir, então, que alguém que deseje exercer sobre mim algum tipo de violência também tem razão em fazê-lo e, mais que isso, deve fazê-lo. A ética propõe um modo de vida em que os outros têm função fundamental.
Ao propor um modo de vida, torno legítimas as condutas que esse modo promove não só para mim, como também para os outros. Sou, assim, submetido a meu plano, a meu estilo. Além desse caráter universal, uma resposta ética deve satisfazer ao que pensamos ser uma vida humana. Alguém que faz uma escolha ética não busca outra coisa senão viver segundo valores que tornam a vida digna de ser vivida. A ética é, portanto, sempre uma proposta de uma vida feliz. Isso nos leva a outra questão: o que é a felicidade? De novo, estamos diante de valores: quais valores tornam a vida justificável? Bens materiais, tangíveis; bens imateriais, intangíveis? A vida humana não pode prescindir dos dois, mas se tivermos de escolher, não teríamos dúvida em optarmos por valores que não são substituíveis. Num exemplo antigo, se o capitão de um navio que enfrenta uma tempestade tivesse de escolher entre salvar uma carga valiosa, lançando os passageiros ao mar, ou salvar as pessoas, jogando fora a carga, estaria fazendo uma escolha entre valores e o papel que desempenham em seu modo de vida. Viver implica escolhas, não há como fugir disso.
Nós da Comunicação – Podemos dizer que a “palavra” (“dou minha palavra como garantia”) ou o “nome” de uma pessoa já foi ou é um valor intangível?
F. M. – Retomando o que dizíamos sobre valores éticos, as escolhas de que dependem nossas ações compõem certo modo de vida. Uma vida é sempre, quando conscientemente construída, um reflexo de nosso modo de pensar. Agimos de modo justo porque acreditamos na justiça, ainda que reconheçamos que não haja justiça suficiente no mundo. Prefiro arriscar minha vida para salvar a de um ente querido porque percebo que minha vida não valeria nada se não agisse assim. A ética implica escolhas, crenças e compromissos que dão à vida um valor que não tem preço. E a palavra é a expressão mais clara desse compromisso.
Nesse sentido, a palavra empenhada é uma extensão de minha vida ética e está envolvida com os valores que a compõem. Antigamente, segundo nos contam, um fio de bigode podia testemunhar o compromisso entre homens de bem, a palavra tinha um valor de documento pelo mero fato de poder ser rememorada. O fio de bigode é uma parte de minha vida, um pedaço dela: esse é o mesmo caráter simbólico que tem a palavra. Trata-se da dimensão em que a vida corresponde ao pensamento, que corresponde à palavra, tornando a ética uma espécie de circuito perfeito. Por essas razões, o renome, o prestígio, a honra são elementos incomensuráveis, mas muito mais valiosos e dignos de credibilidade que o testemunho métrico de bens tangíveis.
Para contato com Fernando Muniz, envie e-mail para: munizfernando@uol.com.br



Fonte Nós da Comunicação

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